Autores: Julia R. Salmazo, J. A. Pirângelo, Thais R. Semprebom, Regiane Dall’Aqua e Douglas Peiró
Tubarão-branco. Fonte: Terry GossWikimediaCommons (CC BY-SA 3.0).
Você pode até se espantar com essa afirmação. Mas não, não há diferença entre cação e tubarão. Cação é apenas o nome genérico e comercial para peixes de diferentes espécies de elasmobrânquios (subclasse dos peixes cartilaginosos, à qual pertencem os tubarões e raias), cuja carne é muito consumida sem que a maioria das pessoas sequer saiba de qual animal se trata.
Existe até uma frase, com uma pitada de humor, mas muito séria, que diz: a única diferença entre cação e tubarão é quem está se alimentando de quem – quando o homem se alimenta do animal, chamam de cação; quando, ao contrário, o animal se alimenta do homem, chamam de tubarão.
Mas, atenção! Que fique claro que o ser humano não faz parte da dieta dos tubarões, ok? Essa é só uma frase ilustrativa do problema, inclusive o número de pessoas que morrem em acidentes com tubarões é muito pequeno.
Acontece que essa desinformação, e até confusão, se tornou uma ameaça tanto para os animais e para a biodiversidade, quanto para os próprios seres humanos que consomem esse tipo de carne.
Vamos entender melhor sobre esse problema e suas consequências?
DESINFORMAÇÃO QUE PREJUDICA A CONSERVAÇÃO
Recentemente foi publicado na revista científica Marine Policy um artigo, de autoria de cinco pesquisadores brasileiros, onde estes mapearam o consumo da carne de tubarão no Brasil e procuram alertar para os riscos ambientais que esse costume implica.
Segundo os autores, o Brasil atualmente é o 1º importador de carne de tubarão em escala mundial. Isso porque, em alguns países asiáticos, as nadadeiras de tubarões (também chamadas de barbatanas) são muito apreciadas na culinária com apelo afrodisíaco, chegando a custar mais de mil dólares por quilo. Uma vez que é proibido cortar as nadadeiras do animal e devolver seu corpo ao mar, muitas vezes ainda vivo (prática conhecida como finning), o restante da carne, que não é de interesse para a grande maioria dos países, é repassado para o Brasil. Aqui, a indústria pesqueira internacional encontra um forte comércio desses peixes, muito apreciados por não possuírem espinhas. Ah, e nós também somos o 11º produtor da carne e o 17º exportador das nadadeiras, que não são consumidas aqui.
Muitas pessoas, no entanto, não sabem que estão consumindo carne de tubarão. Na verdade, segundo esse estudo, mais de 70% das pessoas não sabem disso! Então, se você também não sabia, não se sinta mal. Isso ocorre porque, ao chegar nas prateleiras de mercados e peixarias, a carne já está limpa, filetada e cortada em postas, sendo vendida com o nome comercial de cação. O importante é que, agora que já sabe, você pode repensar seu consumo.
Cação sendo vendido sem identificação da espécie. Fonte: cortesia de Lucia Malla.
POR QUE DEVO REPENSAR O CONSUMO DE CAÇÃO?
O comércio e o consumo de carne de tubarão no Brasil não são proibidos. Mas existem algumas regras, como leis que proíbem a captura de espécies ameaçadas e o descarte da carcaça. Esta última tem o objetivo de permitir a identificação da espécie e também de evitar a prática do finning. Só que muitos não cumprem as regras e quase sempre a carne é limpa ainda na embarcação, chegando à costa já em forma de postas e filés para serem comercializadas.
Contudo, a identificação dos animais é muito importante, pois, como já dito, cação é um termo genérico para uma infinidade de espécies de tubarões e, inclusive, de raias.
Segundo um dos autores do estudo mencionado anteriormente, em declaração para o site da Universidade Federal do Paraná, “basicamente, ‘o que cai na rede é peixe’ no Brasil e, depois, acaba vendido com o nome de ‘cação’”. E é aí que mora o problema, já que, no nosso país, 33% das 145 espécies de elasmobrânquios estão ameaçadas de extinção (superando a taxa global de 25%). Ou seja, ao comer cação, você pode estar contribuindo para a diminuição da população de espécies como tubarão-martelo, cação-anjo e raia-viola, todas ameaçadas!
A redução das populações e até a extinção das espécies de tubarões e raias podem trazer grandes problemas para os ecossistemas marinhos, afetando, inclusive, o ser humano. Os elasmobrânquios são considerados predadores de topo de cadeia e, por isso, são muito importantes para o ecossistema, controlando as populações de espécies que estão abaixo deles na cadeia alimentar. Seu desaparecimento pode causar um aumento nas populações de suas presas e, por consequência, a diminuição das populações de outras espécies e da biodiversidade no geral. Isso afetaria os estoques pesqueiros e até o ecoturismo, atividades importantes econômica e culturalmente para os humanos.
Tubarão-martelo, espécie que se encontra criticamente ameaçada de extinção no Brasil e tem sua carne vendida como cação. Fonte: Barry Peters/WikimediaCommons (CC BY 2.0).
No intuito de identificar as espécies comercializadas e garantir uma fiscalização mais eficiente para a conservação das espécies ameaçadas, estudos de genética forense vêm sendo feitos. Pedaços de tecido dos animais são coletados e, por meio de técnicas de genética molecular, a espécie a que cada um pertence pode ser confirmada a nível molecular. Nesses estudos, foram identificadas espécies ameaçadas e, por conseguinte, protegidas por lei (Portaria MMA 445/2014), sendo comercializadas como cação.
SUA SAÚDE TAMBÉM PODE ESTAR EM RISCO!
Mas há ainda outro motivo para não comer carne de cação, não só daqueles ameaçados de extinção. Como já dito, eles estão no topo da cadeia alimentar. Dessa forma, ocorre a biomagnificação, processo que consiste no acúmulo progressivo de substâncias ao longo da cadeia alimentar. Ao se alimentar de presas que agregaram substâncias em pequenas quantidades, os elasmobrânquios as acumulam em maiores quantidades. E o mesmo ocorre conosco quando nos alimentamos desses peixes: as substâncias se acumulam ainda mais em nossos corpos. Algumas delas são metais pesados, como mercúrio e arsênio, que, se ingeridas em quantidades elevadas, podem causar danos cerebrais. Isso, inclusive, é um dos motivos para que muitos países rejeitem a carne de cação e organizações não recomendem seu consumo por mulheres grávidas, lactantes e crianças.
E aí, esses são motivos suficientes para repensar o consumo de carne de tubarão? Considere com carinho parar ou, ao menos, consumir conscientemente, procurando saber a origem do que está em seu prato. Você também pode compartilhar o conhecimento que adquiriu aqui com seus amigos e familiares, para que eles também possam refletir sobre esse problema.
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Bibliografia
BARRETO, R. R. et al. Rethinking use and trade of pelagic sharks from Brazil. Marine Policy, v. 85, p. 114-122, nov. 2017.
CARDOSO, C. B. Em artigo, biólogos alertam para risco que consumo de cação representa para tubarões ameaçados de extinção. Disponível em: <http://www.ufpr.br/portalufpr/blog/noticias/em-artigo-biologos-alertam-para-risco-que-consumo-de-cacao-representa-para-tubaroes-ameacados-de-extincao/>. Acesso em: 24 out. 2017.
MANIR, M. O que faz do Brasil uma ameaça ao futuro dos tubarões - que muita gente come sem saber. Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-41356540>. Acesso em: 24 out. 2017.
VILIATI, V. H.; SPERB, C. Tubarões e Raias Comercializados no Sul do Brasil. Disponível em <http://www.bookess.com/read/27763-tubaroes-e-raias-comercializados-no-sul-do-brasil/>. Acesso em: 24 out. 2017.
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