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Mitos indígenas e sua relação com a biologia marinha

Atualizado: 3 de ago. de 2022

Autores: Aline Pereira Costa, Fernanda Cabral Jeronimo, Thais R. Semprebom, Raphaela A. Duarte Silveira e Douglas F. Peiró



Ilustração de uma praia, à esquerda tem uma mata, com alguns coqueiros. Essa mata é seguida por uma faixa de areia, com algumas pedras. É possível observar quatro indígenas adultos e uma criança na areia da praia. Três desses adultos seguram um tipo de madeira. À frente destes indígenas está o mar com o monstro Ipupiara saindo das águas. O monstro possui escamas na cintura, braços e seu rosto é semelhante ao de um cachorro.

Representação do mito Tupi do Ipupiara, quando indígenas avistam o monstro Ipupiara saindo do mar. Fonte: elaborado por © 2020 Douglas Cabral.



Trazemos em nossa história as riquezas dos conhecimentos indígenas. Esses conhecimentos trazem consigo uma ampla forma de compreendermos não só a nossa história, mas também a nossa relação com a natureza.


O mito é a forma pela qual os indígenas compreendem os fatos e eventos da vida. É por intermédio deles que é explicada a origem das coisas e sua aplicação no cotidiano. Esses mitos muitas vezes são específicos de um povo, mas muitos acabam sendo absorvidos pelas comunidades não indígenas, sendo transmitidos por todo território brasileiro. O que nem todos sabem é que essa riqueza de conhecimento pode ser utilizada para explicar as ciências, compreendendo a nossa relação com a natureza e mantendo viva nossa cultura.



FORMAÇÃO DO OCEANO


Para os Tupinambás, o mundo (céu, terra, pássaros e os demais animais) foi criado por Monã. O mar só surge após Monã se decepcionar com os humanos, pois estes passaram a viver desordenadamente. Diante disso, Monã enviou o fogo que consumiu tudo, salvando apenas um homem: Irin-Magé. Arrependido, Monã envia a chuva para apagar o fogo, contudo, a água da chuva não poderia retornar às nuvens, ficando represada. Essa grande quantidade de água recebeu o nome de mar. Os tupinambás explicam que o mar é amargo e salgado porque a terra, tendo sido transformada em cinza, lhe deu esse sabor.


Se compararmos os detalhes do mito Tupinambá com as teorias científicas, percebemos que ambos possuem relação, pois retratam o surgimento da água do oceano advinda de outro lugar.


Outra abordagem é com relação ao sabor salgado da água, que ocorre devido à natureza da água pura e aos materiais nela dissolvidos. Os sólidos dissolvidos na água do mar são produzidos pelo intemperismo das rochas (desgaste físico, químico ou biológico) que são carregados pelos rios. Desses sólidos, a maior concentração é de íons de sódio e cloreto, porém também estão presentes cálcio, magnésio, potássio, dentre outros.


De acordo com o mito , o mar é salgado devido às cinzas provenientes da queima, e essa explicação pode ser constatada conforme um estudo que mostra que as cinzas resultantes da queima de madeira são compostas por potássio, cálcio, magnésio e outros.



CARAMURU - O DEUS DRAGÃO

Desenho em preto, branco e cinza do monstro Caramuru saindo da água. O corpo do caramuru é semelhante ao de uma cobra com três nadadeiras, a cabeça lembra a de um peixe. Sua boca está um pouco aberta e possui alguns dentes. Em cima da cabeça há duas nadadeiras menores (dorsais). Ao fundo do desenho é possível observar uma montanha.

Caramuru – o deus-dragão. Fonte: cedido gentilmente por Felipe Galhardo.



Caramuru é considerado um deus-dragão que podia ser bom ou ruim, regendo as ondas revoltas do grande oceano. Por possuir o corpo alongado e com movimentos ondulatórios, os nativos acreditavam que se tratava de uma serpente gigantesca. Além disso, raramente era visto, pois ficava recluso em fossas abissais ou em cavidades oceânicas.


De acordo com os indígenas, o estado do mar era de responsabilidade do Caramuru. Para a Ciência, a agitação do oceano está relacionada com a formação de suas ondas, que se formam, entre outros fatores, de acordo com os ventos: quanto mais fortes e rápidos, maiores serão as ondas. Além disso, alterações na intensidade e na distribuição de sistemas meteorológicos, como ciclones extratropicais e tempestades, têm efeitos mais significativos sobre o oceano.


Caramuru, no tupi-guarani, significa moréia; e se nos atentarmos, este ser mitológico possui morfologia e hábitos semelhantes a uma moreia. Moreias são peixes ósseos pertencentes à família Muraenidae, seu corpo é alongado e comprimido lateralmente, semelhante a uma serpente. São animais que podem atingir até 4 m de comprimento, ocorrendo nas regiões tropicais e subtropicais. Além disso, são encontradas tanto em águas rasas quanto profundas, habitando fendas de rochas e recifes de corais.



Foto de uma moréia. Na foto observa-se o fundo colorido de um coral. Mais a frente está uma moreia, seu corpo é alongado com pintas marrons, no seu dorso tem uma nadadeira também com mesma coloração. Seu olho é grande e sua boca está aberta, onde se pode observar alguns dentes.

Gymnothorax moringa, popularmente conhecida por moreia-pintada. Fonte: Florent Charpin/WikimediaCommons (CC BY 3.0).



JAPEUSÁ - O MONSTRO LEGENDÁRIO DO MITO GUARANI


A história de Japeusá, um mito do povo Guarani, está relacionada à criação dos primeiros humanos por Tupã. A humanidade surge a partir de Rupave e Sypave, que tiveram várias filhas e apenas três filhos, dentre estes Japeusá. Desde cedo, Japeusá mostrou ser um homem mentiroso e trapaceiro, enganando as pessoas para tirar proveito. Porém, ele acabou cometendo suicídio afogando-se, mas foi ressuscitado adquirindo não mais a forma humana, mas sim de um caranguejo. De acordo com os Guaranis, desde então os caranguejos foram amaldiçoados a andarem para trás, como o Japeusá.


A imagem possui fundo escuro, sobre esse fundo há dois círculos. O primeiro circulo está posicionado à esquerda, e dentro tem o desenho da estrutura corporal de um homem, porém em forma de caranguejo. Ele possui uma flecha pendurada em seu corpo. Abaixo e a direita, há outro circulo onde se observa o fundo com areia de praia e sobre essa areia um caranguejo, seu corpo é amarelado e suas patas lilás/vinho.

Japeusá (esquerda) e caranguejo Ucides cordatus ou caranguejo-uçá (direita). Fonte: elaborado por Aline Pereira. Fontes: Japeusá elaborado por Douglas Cabral e caranguejo-uçá Leoadec/Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0).



Caranguejos realmente são animais que chamam atenção por sua forma de andar. O mito se locomove para trás, não lateralmente, enquanto os caranguejos podem andar para frente e para trás. Por suas pernas serem bem articuladas, de um lado elas se esticam e do outro lado impulsionam o corpo. Assim, andar de lado se torna comum, principalmente quando precisam se locomover rapidamente.



O MITO DO IPUPIARA


O mito do Ipupiara é um dos mais conhecidos, proveniente dos Tupis. Este monstro habitava a cidade litorânea de São Vicente, SP, no séc. XVI, e de acordo com os indígenas, ele atacava pessoas e animais, matando-os e levando-os para o fundo do mar. Isto tornava-o conhecido como o demônio colecionador de almas, posto que as almas dessas pessoas ficavam presas nas profundezas do oceano.


Ilustração em preto e branco do monstro Ipupiara. Centralizado está o monstro, que possui forma de peixe da cintura para baixo com pontinhos representando escamas. Acima da cintura é possível observar braços, onde as mãos possuem garras. O rosto é semelhante ao de um cachorro com língua para fora. Ao lado da representação do monstro tem um homem com uma espada espetando o Ipupiara. E ao fundo é possível observar casas que formam uma vila.

Monstro marinho Ipupiara - figura mítica da cidade de São Vicente. Fonte: Pero de Magalhães Gândavo/Wikimedia Commons (CC0).



Para estudiosos, o Ipupiara nada mais era que um lobo-marinho que chegava ao litoral do Estado de São Paulo. De fato, a figura do Ipupiara é semelhante à desses animais, se pontuarmos algumas características entre ambos. O Ipupiara é relatado como um monstro com mais de quinze palmos de comprimento (aproximadamente 3,5 metros), com pelos no corpo e cerdas no focinho. Sabe-se que os lobos-marinhos podem atingir quase 3 m de comprimento, seu corpo é adaptado ao ambiente marinho com membros em formas de nadadeiras e coberto por pelos. Geralmente, sobem à praia em busca de alimento e podem ser agressivos com a aproximação humana, visto que não estão acostumados conosco.


A imagem é um diagrama com três imagens. Na parte de cima do diagrama tem um quadrado com o desenho do Ipupiara que possui forma de peixe da cintura para baixo com pontinhos representando escamas. Acima da cintura é possível observar braços, onde as mãos possuem garras. O rosto é semelhante ao de um cachorro com língua para fora. Ao lado da representação do monstro há um homem com uma espada espetando o Ipupiara. E ao fundo é possível observar casas que formam uma vila. Desse quadrado saem dois ramos. À esquerda tem um quadrado com a foto de um lobo marinho sobre uma pedra (cor clara) tomando sol. Seu corpo é preto, possui os membros em forma de nadadeira, seu rosto os olhos estão fechados, sua orelha é pequena e próximo ao focinho pode observar os bigodes. À direita, tem um quadrado com a foto de outro lobo marinho, também tomando sol sobre rochas escura. Seu corpo é preto claro e sua barriga é marrom, os membros possuem forma de nadadeiras, a orelha é pequena e o focinho redondo.

Arctocephalus australis (esquerda) e Arctocephalus tropicalis (direita), espécies de lobos-marinhos de ocorrência no litoral paulista. Espécies que deram origem ao Ipupiara (acima). Fonte: elaborado por Aline Pereira, a partir de Pero de Magalhães Gândavo/Wikimedia Commons (CC0), CHUCAO/Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0), Nicolas Servera/Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0).



Os mitos indígenas retratam a história de diversas culturas e talvez nem conheçamos todos eles. Preservar e respeitar esses mitos é uma forma de respeito a esses povos, além de manter acesa a nossa história como brasileiros. Além disso, as culturas indígenas, aqui representadas por alguns de seus mitos, são exemplos de conhecimento e respeito à natureza e nos mostram o quanto podemos aprender e ensinar a partir deles.




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Bibliografia


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