Autores: Aline Pereira Costa, Fernanda Cabral Jeronimo, Thais R. Semprebom, Mariana P. Haueisen e Douglas F. Peiró
A presença de resíduos farmacêuticos no ambiente marinho é uma ameaça aos oceanos, que prejudica não apenas os organismos marinhos, mas também o ser humano. Fonte: Piqsels (CC0).
Ouvimos muito sobre a degradação dos oceanos por diversos fatores, sendo a poluição por microplásticos um dos mais mencionados na atualidade. Porém, o que muitos ainda não têm conhecimento, é que nossos oceanos vêm sofrendo com uma outra forma de contaminação: a poluição por resíduos farmacêuticos.
O alto consumo de medicamentos por parte da população é algo preocupante, pois os resíduos gerados por estes fármacos poluem as águas, sejam de rios ou de mares. Esses resíduos são um sério problema, porque podem ser biologicamente ativos, significando que podem agir sobre toda a biodiversidade marinha. Além disso, a contaminação por esses resíduos pode afetar as cadeias alimentares, afetando até nós, seres humanos.
COMO OCORRE ESSA CONTAMINAÇÃO?
A população humana aumentou sua expectativa de vida ao usar medicamentos para tratar doenças. No entanto, o alto consumo desses fármacos é um fato preocupante. Além disso, muitas pessoas têm o hábito de se automedicar, comprar medicamentos sem prescrição médica ou além do necessário.
Inicialmente a contaminação ocorre com a eliminação desses fármacos na excreção e na evacuação. Quando consumimos um medicamento, ele não é totalmente absorvido pelo organismo, consequentemente, os resíduos (compostos farmacêuticos ativos) ou os seus metabólitos (compostos farmacêuticos transformados), que não são metabolizados pelo organismo, são eliminados na urina ou nas fezes. Dessa forma, os compostos que não foram absorvidos pelo organismo têm como destino o esgoto, assim como os medicamentos que não foram totalmente consumidos. Ou então, aqueles que passaram do prazo de validade, acabam sendo descartados de forma irregular no lixo ou em vasos sanitários.
A partir disso, no meio ambiente, o resíduo farmacêutico passa por rotas até chegar ao ecossistema marinho. Uma das principais rotas de contaminação são as águas residuais (conhecidas por esgotos). Porém, a biodegradação desses resíduos nas Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) não é eficiente, consequentemente os resíduos presentes acabam sendo lançados nos oceanos. Um exemplo é a cidade costeira de Los Angeles, que lança suas águas residuais diretamente no ecossistema marinho.
Outra forma de contaminação marinha são as águas residuais provenientes de navios, barcos e cruzeiros marítimos, lançadas diretamente nos oceanos, muitas vezes sem tratamento.
A aquicultura e a criação de animais também são formas de contribuição da contaminação dos oceanos por resíduos farmacêuticos. O uso de antibióticos nessas práticas muitas vezes contaminam o solo e, consequentemente, o lençol freático, que levam esses contaminantes para o mar.
Diagrama das fontes de contaminação do ecossistema marinho por resíduos farmacêuticos. Fonte: elaborado por Aline Pereira com base na bibliografia.
CONSEQUÊNCIAS DA CONTAMINAÇÃO MARINHA
Apesar dos estudos da contaminação marinha por esses resíduos serem ainda muito escassos, os pesquisadores já conseguem estimar as consequências de contaminação da biota marinha. Estudos disponíveis mostram que as concentrações desses resíduos presentes no oceano são muito baixas, porém, a carga persistente de eliminação e sua bioacumulação no meio ambiente é o que torna o ecossistema marinho contaminado.
Um estudo em laboratório com caranguejos da espécie Hemigrapsus oregonensis mostrou que indivíduos que são ativos à noite, quando expostos a altas concentrações de fluoxetina (princípio ativo do medicamento Prozac, utilizado no estudo), apresentaram comportamentos de atividade durante o dia, além de um comportamento agressivo diante de seu predador (caranguejos da espécie Cancer productus) e até mesmo intraespecificamente (entre indivíduos da mesma espécie). A consequência dessa alteração no comportamento pode levar ao aumento da predação e mortalidade de H. oregonensis, visto que os indivíduos ficam mais vulneráveis ao predador.
Espécies estudadas e resíduo farmacêutico utilizado nos experimentos. (A) Caranguejo Hemigrapsus oregonensis, espécie estudada. (B) Caranguejo Cancer productus, predador de H. oregonensis. (C) Medicamento contendo fluoxetina, fármaco relacionado à alteração no comportamento de H. oregonensis. Fonte: elaborado por Aline Pereira com base no estudo de Peters e colaboradores. Foto (A) Jerry Kirkhart/Wikimedia Commons (CC BY 2.0); (B) Kirt L. Onthank/Wikipedia (CC BY-SA 3.0) e (C) Maksim/Wikimedia Commons (CC BY SA-3.0).
Resíduos de antibióticos também são muito encontrados no ambiente marinho, causando grande preocupação. Foi demonstrado que este tipo de resíduo tem afetado o crescimento das algas. A exposição à tilosina (antibiótico utilizado em medicina veterinária) resultou na redução da biomassa da comunidade de microalgas bentônicas, além da sua produtividade primária. A exposição retardou o crescimento de diatomáceas e exerceu baixo efeito na biomassa de cianobactérias. Além disso, concentrações de resíduos de antibióticos podem desenvolver populações de bactérias resistentes presentes nos sedimentos marinhos.
A contaminação marinha por resíduos farmacêuticos que atuam no sistema endócrino (hormônios), como o caso dos contraceptivos e estrogênios, é outra grande preocupação. Esses resíduos estão relacionados ao desenvolvimento de anormalidades no sistema reprodutivo de alguns organismos, induzindo algumas espécies ao hermafroditismo ou à feminilização completa. Fato observado em indivíduos de peixes Oryzias latipes, que quando expostos ao estrogênio 17 β-estradiol (hormônio sexual feminino e esteróide), induziram a feminilização dos machos.
Oryzias latipes é uma espécie que habita águas de planície e salobras e pode ser encontrada em poças de marés em regiões costeiras do Japão e da Coréia. Fonte: Seotaro/ Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0).
Além disso, animais marinhos de níveis tróficos mais altos, como tubarões, golfinhos e baleias, também têm apresentado concentrações de resíduos farmacêuticos em seus organismos. Isto significa que a cadeia alimentar marinha está sendo diretamente afetada pela bioacumulação desses resíduos ou pode estar indiretamente perdendo espécies-chave. O fato é que não são apenas os organismos marinhos que sofrem com a contaminação por resíduos farmacêuticos, mas a saúde humana também está em risco, já que consumimos muitas espécies marinhas e essa ingestão prolongada também pode ocasionar alterações em nosso organismo.
O QUE FAZER PARA DIMINUIR A CONTAMINAÇÃO POR RESÍDUOS FARMACÊUTICOS?
Diante do aumento da população, principalmente em áreas costeiras, a tendência é um aumento do descarte irregular desses resíduos. Assim, é necessário o uso de medidas mitigadoras com o intuito de diminuir a farmacopoluição dos oceanos como a logística reversa como forma de amenizar os impactos da poluição ambiental por resíduos farmacêuticos, assim reduzindo o descarte irregular desses medicamentos, que receberiam um destino adequado, como a incineração, como propõem alguns pesquisadores. Atualmente já existem pontos de coleta, nos quais podemos descartar conscientemente esses medicamentos. Ademais, precisamos ser conscientes e fazermos nossa parte, com o uso racional de medicamentos, não adquirindo além do necessário e com prescrição médica. O fato de ainda estarmos caminhando neste campo de pesquisa faz com que mais estudos sejam necessários para um melhor monitoramento da concentração desses resíduos no ecossistema marinho.
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Bibliografia
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